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terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

O sorriso de ternura

Ela chegou em casa e escreveu a história. Amigos há anos. Amizade intelectual com altos e baixos distanciados. Ela fez durante um tempo fantasias eróticas que terminavam sempre: nunca será meu homem, nunca serei sua mulher. Às vezes as fantasias cresciam. Ela dava um jeito de apagar o fogo. Ele irônico e bem humorado. Conversavam. Ela nunca estava completamente à vontade. Tinha de fazer figura.

- Pára de me olhar com essa cara irônica!

- Uai, minha cara é essa mesma.

Ela estava em pé, folheando livros, comentando sobre os ensaios do dia. Ombros meio duros, meio levantados, meio caídos. Na presença dele não sentia bem seu corpo feminino. Ele veio despercebido e segurou nela. Passou as mãos em volta dela. Tão mais alto do que eu – ela pensou primeiro- depois pensou o que pensava sempre: nunca serei, nunca será. Mas primeiro mesmo foi um encolhimento, uma falta de jeito. Torceu os ombros pra frente, recusou tão sem jeito. O braço dele não insiste. Ela não pode sequer perceber essa ternura. E sabe. Ia saindo e sua imaginação literalizava. Saio daqui e pego o primeiro que buzinar na rua. Dois buzinaram. No caminho pra casa passou em frente a uma casa noturna, luz néon, e o corpo dele, como era possível?

Em casa havia a família adormecida, a dor nos olhos, o calmante que se vende sem receita. Não posso conceber essa ternura, não posso conceber de uma vez só. Amanhã escrevo tudo sem ritmo nem estilo, aí solto meus ombros, como não soltei com ele lá.

Não resistiu e escreveu imediatamente. Só não disse, nem quis mais saber da luz néon, e do sorriso de ternura lá dele. Vê se não me olha assim, estúpido!


Daniela Machado



Muda-Se-Mesmo


Ele foi me dando tesão de mudar
De ir deixando tudo pra lá
E aí mudei
De casa,
De emprego
De amigos
De família
Pra depois ele ficar botando pilha
De largar tudo pra lá
Todo mudado


Daniela Machado